Conhecimento abre portas e pavimenta novos caminhos
 
Volta e meia, a convidada indesejada aparecia na sala. Por onde entrava? Provavelmente por uma das frestas do barraco suspenso em frágeis palafitas para ficar a salvo das águas escuras e fétidas do rio Paranhos. A "visita" não se incomodava em compartilhar o acanhado espaço com a presença dos moradores. Ela se postava à frente da tevê, como se estivesse hipnotizada pelo brilho da tela. Com o alarme de sua presença, partia com passadas rápidas, desengonçadas, arrastando a gorda barriga peluda pelo assoalho irregular. Mas os rastros dessa ronda sempre podiam ser constatados nas prateleiras e gavetas da cozinha. Por isso, era preciso blindar os alimentos. Estocar tudo na geladeira ou colocar em baldes com tampa, de plástico reforçado. Caso contrário, esta e outras ratazanas garantiriam um farto jantar.

A cena nunca foi assistida com passividade. Mas de nada adiantaria eliminar aquela ratazana. Outras surgiriam. Afinal, havia dezenas, centenas delas explorando o manguezal pontilhado de lixo lançado indiscriminadamente. Sacos, copos, restos de móveis e colchões a vagar ao sabor da maré. Cristiane Maria de Almeida tinha de mudar a trajetória de vida que a levou, com seu marido e três filhos, a transformar em lar a instável moradia fincada na ocupação batizada como Vila Esperança, em Cubatão. Não mais esperar apenas por políticas públicas habitacionais ilustradas em mapas e propagadas em discursos inflamados, que não se concretizavam em ruas ou conjuntos populares.

Contrariando o ditado "quem espera sempre alcança", partiu para o encontro do futuro. E, nessa luta - para galgar degraus ao espaço que julgava merecer como cidadã -, elegeu como arma o conhecimento, a educação. Claro que o seu "segundo sol" não ocorreu como a magia de uma cena de novela. Foi preciso esforço, dedicação e apoio, além de encontros que ocorrem ao acaso com pessoas que mudam vidas com palavras e atitudes. Hoje, a assistente social e chefe da Divisão de Estudo e Planejamento da Prefeitura de Cubatão, Cristiane Maria, já planeja cursar pós-graduação em Políticas Públicas.

Antes de se mudar para a Vila Esperança, ela e seu marido, Paulo Alves da Costa, não conheciam a rotina de uma comunidade criada a partir de uma ocupação irregular. Procedentes de Embu-Guaçu, município da Região Metropolitana de São Paulo, mudaram-se para o núcleo Vila Nova, em Cubatão, onde já vivia um parente, em 1999. Com apenas um ano de casados, buscavam novas oportunidades para construir as bases de sua família. Por vezes tentaram fugir do aluguel. Mas não conseguiam vencer a burocracia para se encaixarem em algum projeto habitacional de caráter social.

Já no início dos anos 2000, com ambos desempregados, as dívidas foram se acumulando e não havia mais como manter em dia o pagamento do aluguel. Compraram o barraco de 6x12 metros na Vila Esperança, a apenas 40 metros da margem do rio. "Até então, só conhecia palafitas das ilustrações dos livros da escola", diz Cristiane. "Morando oito anos na Vila Esperança, enxerguei a vida como ela é. Aprendi até onde o ser humano chega na questão da falta de direitos fundamentais, a questão da ausência do Estado. A violência gratuita. Foi a maior faculdade que cursei".

Com três filhos e com a economia doméstica dependendo de parcos ganhos obtidos com "bicos", Cristiane buscou orientação sobre planejamento familiar na Unidade Básica de Saúde da Vila Natal. Foi seu primeiro contato com o universo da Assistência Social. A excelência no atendimento profissional da funcionária pública municipal Ana Paula da Silva influenciaria, anos depois, a decisão de Cristiane de cursar a universidade. "Muitas pessoas desconhecem o impacto positivo que um atendimento de qualidade pode ter na vida de uma família".

Com o terceiro filho com mais idade, Cristiane voltou aos bancos escolares. Como já havia cursado o Ensino Médio no Planalto Paulista, prestou o vestibulinho para ingressar na Escola Técnica Estadual de Cubatão. Um ano e meio depois participou da formatura da primeira turma de técnicos em meio ambiente. Logo depois começou a saga dos concursos públicos. Primeiro, para atuar na área de formação na Prefeitura de São Vicente. Aprovada, não foi chamada para tomar posse do cargo. Depois, enfrentou o processo seletivo da Cursan para auxiliar de jardinagem. Contratada, exerceu a função por cinco anos.

Era preciso mais. E foi então que resolveu prestar o Enem. Com as notas obtidas, várias portas se abriram. "Poderia cursar Engenharia Civil ou Ambiental, Oceanografia ou Assistência Social. Escolhi Assistência Social na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), no campus de Santos". O diploma foi conquistado cinco anos depois, incluindo dois anos de estágio na Prefeitura de Cubatão.

A nova habilitação a credenciou a prestar outros concursos públicos. Para assistente social em Itariri, Itanhaém, Pariquera Açu, Mongaguá, Mauá, Universidade Federal ABC e ainda como auxiliar administrativa da Polícia Militar. Aprovada em todos, aguardava convocação para posse quando fez outro concurso, agora da Prefeitura de Cubatão, já em 2016. Também aprovada, tomou posse do cargo de assistente social, passando a trabalhar, lado a lado, com as profissionais que a atenderam na UBS e durante o processo de qualificação para uma habitação de interesse social (Lizandra Freire), e ainda no decorrer do estágio (Simone Lopes). "Arregacei as mangas e caí de braços abertos no trabalho".

Hoje, aos 39 anos e não mais residindo na Vila Esperança (mudou-se para um apartamento no conjunto habitacional Imigrantes I), ela recorda o impacto que sentiu ao retornar, como profissional de Assistência Social, ao mesmo local onde viveu por quase uma década.

"Quando fomos incluídos entre as 880 famílias atendidas pelo programa de habitação de interesse social, desocupamos a área e doei todo o material do barraco para os que ficaram. Madeira, caixa d'água... e o espaço ficou vazio. Quando voltei anos depois, para fazer uma ação social, encontrei o lugar não com a recuperação da vegetação, mas ocupado por outro precário barraco". O fato reforçou ainda mais o desejo de seguir adiante nos estudos e fazer pós-graduação em Políticas Públicas.

"Na comunidade há uma solidariedade muito forte, imposta pela dificuldade, pela violência", afirma. "É uma área de extremo risco, com muito tiroteio. Em situações de toque de recolher, todas as crianças são protegidas, guardadas na casa mais próxima. Há um cuidado com a vida do outro. Tem muita gente boa que mora assim e faltam políticas públicas para atender essas famílias".

A trajetória de Cristiane Maria já se tornou motivo de inspiração para os antigos e novos vizinhos. Sempre a procuram para obter detalhes sobre como conquistar uma vaga na universidade pública, como ter sucesso em um concurso público, como direcionar seus filhos para amealhar conquistas pessoais pelo caminho da educação. "Oriento e informo no que posso. Hoje me sinto privilegiada de fazer algo que gosto muito".

Cristiane Maria faz questão de frisar que os filhos Atilio, Muniz e Lincoln  procuram seguir os passos dos pais. "Meu marido parou de estudar enquanto eu cursava Assistência Social no período noturno. Não podíamos deixar as crianças sozinhas. Agora ele está cursando Geografia e Ciências do Mar em universidades públicas", disse, concluindo: "A educação te oferece crescimento pessoal. Você se torna, sem querer, uma referência para propagar valores".

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